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O GOVERNO DAS DESIGUALDADES

 M. Lazzarato

 

M.Lazzarato O governo das desigualdades - livro.pdf (536,5 kB)

  

Os neoliberais têm, claramente, uma política social. A sociedade, com o neoliberalismo como com o Keynesianismo, é alvo de uma intervenção permanente. O que mudou foi o objecto e a finalidade dessa intervenção. Trata-se de estabelecer um estado de “igual desigualdade” e de “pleno emprego precário”. Deste governo pela desigualdade que trata cada indivíduo, cada trabalhador considerado individualmente, como uma empresa, emergem os medos diferenciadores que atingem todos os segmentos da sociedade neoliberal e que constituem o seu alicerce afectivo. Porque recusa confrontar-se com os efeitos de poder da protecção social e não pretende mais que defender os direitos adquiridos, a esquerda é impotente face a esta política. Para sair deste impasse, deverá aprender a combinar a luta pelos direitos, a luta no terreno da representação política, bem como as lutas económicas, com as lutas para se governar a si-mesmo. Ou seja, é urgente articular, em vez de as opor, “crítica social” e “crítica artística”.

 

De uma tradução feita a muitas mãos

“Rememoremos então alguns factos concretos. Na sequência da entrevista da ministra ao Público de 25/06/10, anunciando os cortes, houve uma imediata reacção da Plataforma do Cinema, logo seguida de representantes doutros sectores, constituindo-se uma Plataforma das Artes – motivado pelas circunstâncias desastrosas, o facto é ainda assim de um relevo particular, que importa assinalar, o de pela primeira vez a “comunidade artística” em Portugal ter reagido colectivamente. A agitação foi de tal ordem que o governo acabou por recuar (...). Foram assim anulados os previstos cortes de 10% no financiamento dos projectos deste ano, e descativadas 7,5% das verbas do PIDDAC, o corte passando assim de 20% para 12,5%. Uma vitória do sector cultural? Simbolicamente sem dúvida, e esse facto há também que registá-lo. Mas na prática as coisas são bem mais complexas...”

O Buraco Negro, texto de Augusto Seabra publicado em https://www.artecapital.net/ estado_arte.php?ref=19,

 

Quando em Junho se constituiu a Plataforma das Artes reapareceu-nos uma vontade já antiga de, em conjunto, discutirmos questões que sentimos como estruturantes do nosso dia a dia: questões de emprego, de desemprego e de trabalho em geral, mas sobretudo questões de como vivemos a vida e de como nos pensamos (e vamos tendo ou não tendo de nos pensar a nós mesmos) em função dessa vida.

Questões que têm a ver, sim, com o trabalho nas artes ou no sector da cultura mas que também nos parecem ser maiores do que isso e achamos que não devem, por isso mesmo, ser reduzidas a “isso” apenas. E isto até por motivos estratégicos: bem pequenas, isoladas (e só “de gestão”!) ficam as actuais questões “das artes” e “da cultura” se não as tentarmos entender à luz mais ampla de uma deriva geral do trabalho em direcção à produção imaterial, um seu alargamento a todas as esferas da existência, o modo como é solicitado a cada trabalhador um investimento activo (em imaginação, inventividade, virtuosismo - características que antes pareciam caracterizar sobretudo o trabalho artístico e académico) na produção de si como um “empresário de si mesmo”.

E como pensar a subtil confusão entre “arte” e “cultura” com as noções vagas e aparentemente complexas de “criatividade” ou de “cidades criativas” tão em voga hoje em dia (noções essas que, mais do que nos parecerem corresponder a uma potencial de livre expressão dos indivíduos, nos parecem conter em si novas e menos transparentes tecnologias de gestão)? E como entender a aparente extrema desigualdade que atravessa o trabalho em geral (e o trabalho “cultural” em particular) de maneira a poder encontrar um terreno comum de união? E como fazê-lo sem que se esteja a contribuir para o isolamento dos artistas no seu “mundo”, separando-os ainda mais do todo da sociedade?[1]

Foi porque todas estas questões se nos colocam, porque, de algum modo, queríamos contribuir para um debate que nos parece estar a precisar de novas palavras e de novas maneiras de colocar os problemas - um velho debate que hoje toma novas formas e que, como tal, nos pode ajudar a formar novos e mais precisos termos para lhes dar resposta - que decidimos traduzir O governo das desigualdades de Maurizio Lazzarato..

Traduzimo-lo voluntária e colectivamente a muitas mãos e ainda não acabámos definitivamente de o rever, ainda não lhe fechámos definitivamente a paginação, antes decidimos divulgá-lo agora, que nos pareceu ser altura. Assim, é uma tradução de trabalho o que aqui apresentamos: tradução de trabalho de um livro escrito, ele mesmo, no decorrer de um conflito (o conflito dos intermitentes em França entre 2004 e 2005), livro instrumento do próprio conflito, tradução de trabalho de um livro de trabalho em suma. Esperemos que a sua leitura possa contribuir para o debate!

 

 

 

Os tradutores       

          

 


 

[1] E quem não se lembra, por exemplo, do artigo de José Pacheco Pereira e de como este propositadamente se queixava dos “artistas” que fizeram a ministra recuar com os cortes anunciados em Junho, apresentando-os como pertencendo a um dos “mundos menos conhecidos e escrutinados da vida pública portuguesa”, isto é, remetendo-os para um lugar marginal cuja influência na sociedade apenas se deveria “à capacidade que têm de influenciar os media a favor das suas causas, (...) porque o seu lugar é central em certas “indústrias culturais”, a que os media estão associados”.

De facto, é na suposta diferença e irredutibilidade dos “artistas” e das suas “criações” em relação ao resto da sociedade que grande parte do debate em torno da recente criação da Plataforma das Artes se tem jogado, seja para afirmar uma diferença irredutível que resultaria do carácter “obscuro” das suas práticas, seja para afirmar uma diferença apenas passível de ser compreendida mediante mais educação e esclarecimento, ou seja, por iniciados ou, pelo menos, por uma classe média mais esclarecida. Como encontrar, então, uma especificidade da actividade artística (e uma sua possível acção colectiva) sem contribuir para construir uma sua imagem como mundo aparte, esfera separada? Como o fazer sem possibilitar a justificação não só de opiniões como a acima referida, como as próprias palavras da Ministra ao afirmar pretender apoiar menos mas “melhores” artistas (apenas os já consagrados ou conhecidos), como se houvesse “demasiados artistas”, como se não fosse necessário um meio criativo fértil, composto por uma grande diversidade de práticas e de propostas para a criação poder ter lugar?

Na realidade, tanto na opinião de Pacheco Pereira como nas preocupações da actual Ministra da Cultura o que parece estar em causa é a separação entre os artistas-com-aspas, os artistas-sem-aspas e a gente “vulgar”. É da descriminação dos artistas em categorias afins às atribuições de verbas (instalando neles uma feroz competitividade interna), e da implementação na sociedade de uma desconfiança face à sua existência (como grupo aparte, “os artistas”) que se trata.